sábado, 10 de outubro de 2009

Matéria da Revista Noize: Coletivos


Fonte: Revista Noize - número 27 (setembro de 2009)

Milhares de anos após nossos ancestrais concluírem que a vida em sociedade e cooperação é muito mais fácil e agradável, nos encontramos em meio ao século XXI. A ode ao individualismo nunca esteve tão presente e enraizada no pensamento particular, e o senso de coletividade foi deturpado tantas vezes que fica difícil conceber um universo de ajuda mútua e crescimento. Particularmente no mundo da música – que não perde em nada em ferocidade e selvageria para o mundo dos antigos neandertais – o espírito do “coletivo” foi subjugado por grandes majors e empresas que burocratizaram e monopolizaram o acesso e a distribuição de conteúdo musical, tornando cada vez mais frágil o conceito de construção de uma cena coletiva, viva e dependente.

Que a velha fórmula utilizada por gravadoras e produtores musicais já está escassa, ninguém mais duvida. Basta olhar o crescimento do mercado virtual de bandas, o fortalecimento do independente, a quebra das fronteiras físicas através de tecnologias de compartilhamento.
Hoje é muito provável que as bandas nacionais que você mais escute nem sejam do seu estado, e sim de cidades a quilômetros de distância. Macaco Bong, Vanguart, Nuda, Rinoceronte, Porcas Borboletas são só alguns exemplos de grupos que expandiram suas fronteiras para todo o
território nacional – e até fora dele – por meio de parcerias com coletivos culturais. Foi investindo em estrutura, conscientização, políticas públicas e novas mídias que os coletivos deixaram de ser sinônimo de um pequeno grupo interessado em algum som novo ou nova forma de arte e expressão. Hoje eles são grandes, produzem conteúdo relevante, trazem à tona o melhor de cada região, investem em pessoal e estrutura, encontram novas soluções para velhos problemas como dinheiro e patrocínio, e, principalmente, quebram as barreiras da música nacional apoiados em uma de nossas mais antigas certezas: a de que juntos somos mais fortes.

O surgimento de um Cubo mágico
Foi pautado por esse pensamento que nasceu o Espaço Cubo, coletivo cuiabano criado em 2002. Em meio a um cenário musical praticamente dominado por bandas covers e música sertaneja, a cena independente de Cuiabá era fragmentada e consequentemente desconhecida.
Diante de um desafio grande como o de estruturar uma cena cultural, o Cubo tornou-se uma das
maiores referências nacionais de produção independente e desenvolvimento de políticas públicas de estímulo à cultura.
Referência essa que veio às custas de um sistema organizacional de dar inveja a muita corporação de grande porte. A estrutura do Espaço Cubo, e de muitos outros coletivos, supera qualquer expectativa de um leitor desavisado. Coletivo nunca foi sinônimo de “hippongagem”
desorganizada. Com um sistema de gestão muito bem constituído, o Cubo percebeu que quanto mais frentes tivesse – e mais espaços atingisse –, melhor seria para o desenvolvimento do coletivo e da cena como um todo. Então, preparou seus colaboradores para gerir com qualidade
as mais diversas áreas, como comunicação, eventos, pesquisas, edição de áudio e vídeo, até parcerias com selos independentes e festivais.
Além disso, também foi o responsável por uma iniciativa pioneira e reproduzida por outros coletivos nacionais: a criação do Cubo Card, que seria basicamente a moeda de troca do coletivo. Funcionando no lugar do dinheiro, a proposta é valorizar o escambo entre os mais diversos setores da cena musical, e desenvolver novas estruturas capazes de manterem umas as outras. Uma banda que faz um show e recebe seu pagamento com a moeda do coletivo pode, dessa forma, posteriormente comprar materiais, pagar operadores de som ou roadies, alugar estúdios de gravação ou até comer em estabelecimentos parceiros ao Espaço Cubo. A idéia principal é
motivar o espírito de troca e parceria, e facilitar o desenvolvimento de um cenário cultural equilibrado, aberto e acima de tudo interligado – porque cena independente há muito tempo deixou de ser sinônimo de se fazer tudo sozinho e na raça. Há sete anos desenvolvendo alternativas no mundo da música e cultura nacional, o Espaço Cubo foi o responsável por alavancar bandas como Vanguart, Macaco Bong, Linha Dura e Ebinho Cardoso – hoje
conhecidas muito alem de Cuiabá.
Pautado sobretudo no cooperativismo, o Cubo investe em ações culturais contínuas que vão da realização de eventos constantes, estruturação de mídias independentes e ampliação do diálogo com a imprensa local, até a realização de festivais que estimulam a troca de tecnologia e o diálogo entre as cenas culturais dos mais variados estados do Brasil. Uma verdadeira escola no que
diz respeito a construir, manter e divulgar música, cultura, arte, e ideais de cooperativismo e desenvolvimento autosustentável.

O farol de Recife
Outro exemplo bem sucedido, apesar de recente, é o coletivo recifense Lumo. Fundado em 2008, ele segue a escola do Cubo e já colhe os frutos de um trabalho bem feito. Recife tem uma história musical muito forte em relação ao independente. Após o boom da geração Mangue – que em épocas pré-internet conseguiu quebrar as barreiras regionais e dar novas perspectivas para a música nacional –, o cenário musical recifense ficou fortemente atrelado a esse formato de sucesso, o que acabou taxando com uma “única cara” um mercado cultural tão grande e rico.
De acordo com Gabriel Cardoso, um dos organizadores do Lumo, no final dos anos 1990 e início dos anos 2000 (já em épocas do início do colapso das majors e ampliação do acesso à internet) surgiu uma forte necessidade de ressignificação do modelo que estava sendo seguido por aqueles que produziam e viviam de música em Recife. Muita coisa além do manguebeat estava antecendo em Recife, e apenas com organização e parceria é que a cena de lá poderia receber o destaque que merecia.
Nesse sentido o Lumo nasceu para garantir o fortalecimento da cadeia produtiva da cultura local através da soma da força de seus agentes – o que é, em suma, o que guia todo coletivo cultural. A ideia que eles tentam desenvolver é a de que não é difícil viver da produção de
cultura, afinal cultura é uma necessidade tão básica do ser humano quanto comer ou respirar. O difícil é despertar nas pessoas a percepção de que os caminhos que levam até a consolidação de uma banda não estão mais nas mãos de poucos, ou de grandes. A trilha para o sucesso pode ser muito mais rápida e simples se feita em parceria com pessoas dispostas a trabalhar em prol de uma cena interligada e forte.

Ao sul e ao sudeste
No sul do país, mais precisamente em Santa Maria, no Rio Grande do Sul, foi que uma casa de shows acabou se tornando o ponto de partida para o desenvolvimento da cena cultural da região. O Macondo Coletivo é filho da casa de shows Macondo Lugar, e aposta principalmente no rock e nas artes. Realizador de eventos como o Macondo Circus (que transfere o epicentro do rock ’n’ roll gaúcho da Capital para a cidade mais central do estado) e o Festim (Festival de teatro independente de Santa Maria), o coletivo estimula desde 2005 a cena independente da região e acumula parcerias tanto com outros coletivos nacionais quanto com a prefeitura da cidade, parceira em vários projetos.
Esse reconhecimento da administração pública só ressalta o quanto o jeito de se fazer e consumir cultura está mudando. Por meio de um sistema bem estruturado, focado em planejamento, comunicação e eventos, o Macondo participa de editais culturais e passou a ser a
porta de entrada para muitas bandas da região ganharem destaque nacional, como a banda principal do coletivo atualmente: a Rinoceronte – que já excursionou por quase todo o pais em festivais promovidos por coletivos parceiros.
Em Minas Gerais, o coletivo Goma tem suas origens em Uberlândia há mais de dez anos, com o surgimento dos primeiros movimentos culturais organizados dentro da Universidade Federal de Uberlândia. Em pouco mais de um ano e meio de existência consolidada como coletivo cultural, o Goma já realizou cerca de 250 shows de bandas de todas as regiões do Brasil e de outros países,
como Argentina, Chile, Estados Unidos, Inglaterra e Suíça. Além disso, assumiu a produção do Festival Jambolada (maior festival de música independente do Estado) a partir de 2008. Também sediou duas edições do Grito Rock América do Sul e foi responsável por uma série de
oficinas, debates, palestras, exposições de fotografia, audiovisual, moda e artes plásticas em seu espaço cultural. Um verdadeiro exemplo de estruturação e desenvolvimento sólido de um cenário cultural.
Um mundo pautado em coletividade
Os coletivos citados anteriormente são apenas uma pequena parte de um país repleto de iniciativas semelhantes. Das mais antigas e organizadas às mais recentes e em fase de estruturação, todos eles possuem como norte três elementos chaves: o Circuito Fora do Eixo, a
Abrafin e o Festival Grito Rock. Essas são as três vertentes responsáveis por unir nacionalmente os coletivos e possibilitar a troca de materiais, referências, e promover turnês de bandas nacional e internacionalmente.
Abrafin é a sigla para Assosiação Brasileira de Festivais Independentes. Criada em 2005 com o intuito de reunir, organizar e potencializar o circuito de festivais de música independente, ela é hoje responsável por coordenar 32 eventos nas mais variadas regiões do país. Com um público anual estimado em 300 mil pessoas por ano, a associação possibilita que mais de 600 bandas nacionaise internacionais realizem shows por todo o território brasileiro. Tudo desvencilhado de grandes selos ou patrocínios. Exemplo de sucesso em meio ao independente, a Abrafin movimenta uma quantia superior a R$ 5 milhões por ano e gera cerca de três mil empregos diretos e indiretos.

Coluna vertebral
A articulação de tantos coletivos não é tarefa fácil, mas é inegável que, estando em contato direto, eles têm mais força. O Circuito Fora do Eixo conecta 40 coletivos do Brasil inteiro e é responsável por estimular a troca de tecnologias, gerir a produção e a distribuição da música
independente e pensar a sustentabilidade da cena alternativa nacional. Também criado em 2005, foca os investimentos na instrumentalização da web para a superação dos limites geográficos da produção independente. Responsável por fazer a conexão entre casas de shows, mídias independentes, selos fonográficos e festivais, o Fora do Eixo é a central que une os coletivos culturais do país.
Um dos principais exemplos da relevância do Circuito Fora do Eixo é a dimensão que o festival Grito Rock, realizado por eles, tomou. O Grito Rock é um dos maiores festivais integrados do mundo, e busca evidenciar a música de cada local, mas com uma perspectiva de conexão entre as diversas cenas. Se hoje é possível pensar em turnês de bandas independentes de uma forma
viável, é graças a organização do Fora do Eixo. Na última edição latino-americana do Grito, bandas do Brasil, Argentina, Uruguai e Bolívia compartilharam palcos e levaram suas músicas muito além das fronteiras físicas de seus países.
Fronteiras de pensamento também foram rompidas com o sucesso de uma iniciativa como essa. O instinto coletivo sempre foi o responsável por levar a humanidade adiante, do tempo das cavernas até hoje. Não teria como ser diferente no mundo música.

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